sábado, 31 de outubro de 2009

Chuva fina

Chuva fina no meu para-brisa
Vento de saudade no meu peito

Visibilidade distorcida

Pela lágrima caída

Pela dor da solidão


Adoro quando estou parada no trânsito e vejo aquela chuva fina caindo suave no vidro da frente. Desligo o limpador e observo as gotículas que caem quase que ritmicamente, como um balé de lágrimas choradas por um céu cinzento e triste, e escorrem rapidamente para baixo, para o chão, juntar-se com as outras milhões de lágrimas choradas antes delas, formando um rio de tristeza na sarjeta.

O semáforo demora a abrir e eu me pergunto se o que está embaçando é o vidro ou se são meus olhos. A boa visão vai ficando comprometida e as gotas vão caindo cada vez em maior quantidade, até que resolvo limpar o vidro, assim como uma criança limpa os olhos depois de chorar copiosamente dentro uma loja de brinquedos, pedindo algo que o pai não pode dar - quem chora mais, o pai ou o filho?

O vermelho vira verde, e eu rumo para casa, enxugando os olhos para enxergar o caminho de volta pra você.
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Halloween

Então, tem as historinhas de vampiros, bruxas, fantasmas, navios-fantasma e blá blá blá... e tem os japoneses.
E os japas são foda.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Frase

"A chuva deformou a cor das horas"
(Manoel de Barros)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Harmonia

Cumpriu sua pena.
Depois de longo tempo em reclusão finalmente foi posto em liberdade. Depois de longo tempo, reforçado pelas duras horas pelas quais passou, cumprindo trabalhos forçados e sendo torturado física e psicologicamente, mal podia acreditar havia chegado a hora de dizer adeus àqueles dias.

Não sabia bem o que fazer, como agir, onde ir. Então achou que era melhor deixar-se levar pelo seu instinto nessas primeiras horas, nesses primeiros dias de vida. Após completar o procedimento de saída, viu-se tão ávido a sair logo daquele lugar que nem se deu conta de que já estava caminhando livre.

Após cruzar a velha estrada, sentiu o sol dar-lhe um tapinha nas costas. Há quanto tempo não sentia o solzinho esquentar-lhe os ombros! Aí sim, deu-se conta, de que já estava fora, de que já havia cumprido sua parte, de que não devia mais nada a ninguém - apenas a si mesmo, e isso ele carregaria pelo restante de sua vida, recluso ou não. Neste momento, ouviu também a festa que os passarinhos faziam, ouviu o vento balançar as folhas das árvores e levantar graciosamente a poeira do chão. Sentiu-se vivo.

Sentiu-se vivo e deu-se conta de que estava com sede e seguiu em direção ao riacho. Caminhou um pouco, mas o sol os passarinhos ainda lhe acompanhavam, e ele estava feliz. Ao chegar na margem, agachou-se e fechou as mãos numa tentativa de formar um copo onde pudesse colher um pouco de água para beber. Repetiu o ato várias vezes e, então, decidiu-se livrar daquele cheiro, daquele asco que aquele lugar tinha. Como o lugar era deserto, tirou as roupas, dobrando-as cuidadosamente e colocando-as onde estava sentado, entrou na água e sentiu-a, na temperatura mais perfeita, envolvendo seu corpo.

Demorou-se naquele momento tão renovador e, quando finalmente saiu, sentou-se na borda do riacho, observando a natureza em volta e tudo que havia perdido naquele longo tempo em que perdera contato com o mundo. Sentiu-se tão a vontade que parecia que simplesmente estivera naquele mesmo lugar sua vida toda.

Agora, a vida estava apenas (re)começando.

sábado, 17 de outubro de 2009

Indigestão

Junte todo esse seu orgulho, espalhe bem num pão integral e coma tudo. Devagar, para não dar indigestão - lembre-se: dentes só os temos na boca, portanto tudo que for mal mastigado vai fatalmente causar-lhe dor de estõmago.

Engoliu? Agora peça desculpas por tamanha estupidez e grosseria.

Não é capaz disso? Ah, está se sentindo indisposto? Então enfie o maldito dedo da goela e suma da minha frente. Você não tem jeito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A estação mais alegre do ano

A rua se parece com os filmes de deserto que assistimos na TV, com algo que se assemelha a uma neblina e embaça e confunde os olhos.

O dia se arrasta em meio a uma permanente sensação de pressão: o mundo pressionando cada centímetro da pele contra os ossos; a pele, já sem espaço para continuar a cobrir o corpo, parece se proteger da temperatura disparando inofensivos jatinhos de água que escorrem pela testa, pelo pescoço, pelas costas, em direção ao chão de areia movediça que parece querer sugar os pés até o centro da Terra - como se o calor insuportável ainda não fosse suficiente, como se lá no meio de tudo estivesse mais agradável.

Chego em casa a noite e ainda está quente. O calor é tanto que eu quase me esqueço que estou lavando louça e me sinto culpada por estar desperdiçando tanta água para satisfazer um prazer - que, em dias como esse, beira a necessidade física.

A próxima atividade da noite é lavar roupa e, quando leio a embalagem do Vanish que pede que água morna seja usada no processo, eu penso comigo Que dia perfeito pra lavar roupa branca. Muito obrigada, Senhor, pelo calor infernal.

As velas do jantar já se derretem sozinhas - adestradas, pelo futuro que as espera ou pessimistas prevenidas, prevendo o futuro e já se antecipando a ele. Noto que o vinho que banha as peras que tenho de sobremesa está em temperatura ambiente. Sopa de pera. Caldo de pera.

Por último, antes me deitar - e, com sorte, dormir - passo os olhos pelo calendário e constato: de acordo com os ciclos menstruais da natureza, o verão só começa daqui dois meses. Enquanto isso, vamos fritando no ventre da Terra.

domingo, 4 de outubro de 2009

(i)mortal

Eu era invencível, intocável.
O mundo se ajoelhava diante de mim e fazia minhas vontades. Todos queriam me agradar.
Todos queriam estar no meu lugar, eu era invejada.
Eu estava no topo. Eu era imortal.
E infeliz.

Joguei-me do pedestal e fui caindo, caindo, caindo. Agora estou no chão, como todos os outros.
Cai e senti o gosto do sangue, escorrendo pelo canto da boca.
Agora eu sangro, como todos os outros.
Mas não me ajoelho pra ninguém, não invejo ninguém, não quero ser ninguém.
Agora, sou feliz.