quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Mal Branco Mal-Entendido

Inacreditável o artigo que li agora há pouco.

Não escondo de ninguém que acho Saramago uma das pessoas mais fabulosas do planeta e não pretendo defendê-lo com este texto. Não há por quê.

É inacreditável que alguém realmente pense que um filme (e, primeiramente, um livro) que representa tantas metáforas possa veicular uma idéia preconceituosa de algo. Eu não preciso defender Saramago pois eu tenho a mais absoluta certeza que meros cegos incompetentes, sujos, viciados e depravados foram a última coisa que passou pela sua brilhante cabeça. Talvez brilhante demais para alguns, incapazes de enxergar que o livro não trata verdadeiramente sobre pessoas que cegaram. O livro fala de um outro tipo de cegueira, aquela de que a maioria de nós sofremos.

Cegueira que nos faz achar que somos melhores que os outros, que temos mais direitos que os outros. "Mal branco" que só permite enxergar nosso próprio umbigo e imaginar que o mundo deve estar girando em volta dele.

Ora, pois, logo no início do filme/ livro, quando o primeiro cego está tentando voltar para casa, a pessoa que lhe rouba o carro não é cega e, no entanto, como se explica ação tão vil?
A atitude das pessoas que despejavam os cegos no sanatório, confinados e longe das "pessoas normais" também não foi nobre. Veja, não estavam cegos e passaram, de certa forma, por incompetentes, sujos, viciados e depravados.
Quando um dos cegos necessitou de medicamento para um ferimento na perna, foram as pessoas que enxergavam que lhe negaram. Que o deixaram morrer.
Que dizer das mulheres cegas, que decidiram aceitar a extrema humilhação de alugarem seus corpos pela comida que iria saciar a fome de vários outros desconhecidos que elas sentiram necessidade de ajudar, uma vez que compartilhavam da mesma situação?

Não, a cegueira de que trata o livro/ filme definitivamente não é a mesma cegueira que está reclamando a Federação Nacional do Cegos.
É a cegueira que cada um de nós traz para a sua vida cada vez que ignora uma pessoa pedindo ajuda ou passando por necessidades. É a cegueira que faz com que nos achemos superiores a alguém porque temos um centavo a mais que essa pessoa. É a cegueira que nos coloca em um trono porque nos faz incapazes de olhar para os lados e nos dar conta de que essa é a última coisa que o mundo em que vivemos precisa: de mais um cego espalhando discórdia e destruição.
É um espetáculo de degradação humana que vemos passar diante de nossos brancos olhos todos os dias.
Degradação que apenas uma pessoa no livro/ filme foi capaz de ver com os olhos do corpo e decidir o que fazer a partir disso. Uma pessoa sã. Uma pessoa que não era cega de alma, que tinha todos os motivos para agir como aqueles à sua volta e, no entanto, manteve-se sã da maneira como podia. Uma pessoa que encontrou outros como ela, cuja única diferença é que ela tinha os olhos do corpo para guiar-lhes o caminho pelo qual todos concordaram em traçar.

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara"

"Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem"

Um comentário:

Maíra Colombrini disse...

Das duas uma... ou os Cages da dita Federação sofrem de cegueira dupla ou independente de sua deficiência física sofrem de burrice.

Bjs

PS - bom te ter de volta na blog-esfera!